sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Consciência Negra e Alimentação

Postamos um texto de uma de nossas colaboradoras, Marili Alexandre, que dialoga com o momento pelo qual estamos passando, com relação a lei Nº 992 . Que a reflexão que ela propõe se torne uma reflexão de todos nós. 


  Estamos vivendo um momento muito especial em que se fala em ações positivas para o reconhecimento da importância das raízes africanas para a cultura brasileira e, concomitantemente, vemos tramitar, no Poder Legislativo, projetos de leis que cerceiam a liberdade dos rituais das religiões afrobrasileiras.
 Forças opostas com interesses semelhantes se mobilizam , pois não há dúvida que o interesse em comum é o PODER , e que , a manipulação de preconceitos será sempre o caminho mais curto para a fragilização da força do concorrente ao voto, à cadeira, ao espaço público, à influência que se quer exercer.
 Quando a questão é ritual então, nem se fale, pois entramos no território da FÉ .
 Assim, para melhor esclarecer a questão dos rituais do candomblé e da umbanda , religiões fundamentadas em matriz africana, eu gostaria de levá-los a uma reflexão quanto aos rituais mais polêmicos, aqueles que são entendidos como "sacrifícios de animais".
 Respirar, alimentar-se, hidratar-se são necessidades básicas para manutenção da vida.
 Todos os seres vivos fazem isso todos os dias , senão estariam mortos.
 A questão tão controversa de que estamos falando, não é a alimentação em si, mas a alimentação com consciência da VIDA E DA MORTE, e as respostas que cada um encontra na sua FÉ  para enfrentar o MISTÉRIO , o PATHOS SOCIAL , ou seja : de onde eu vim?,  por que estou vivo? para onde vou quando morrer? . 
 Em todas as religiões, os rituais se estabelecem para acalmar e dar conforto ao ser humano diante da experiência da dor e da consciência da morte.
 Não raro, estes rituais estão ligados à ALIMENTAÇÃO, que sempre estará  associada à experiência de conforto e sensação de prazer desde os primeiros instantes da vida de cada um.
 Veja o ritual da missa da Igreja Católica Apostólica Romana . É um ritual ligado à alimentação do corpo e da alma.  
 Analisem : as pessoas se reunem à mesa da comunhão , é um banquete onde Cristo é o cordeiro que foi sacrificado para a Salvação de todos que seguirem seu caminho, é a representação ritual da última ceia de Jesus, onde ele dá seu corpo como pão e seu sangue como vinho para alimentar a FÉ e a confiança na vida eterna dos fiéis. Para todo cristão, nesse momento, Cristo sacrificado está presente como promessa da vida após a morte.
 E quantos outros rituais levam os fiéis ao banquete, à festa em que o SACRIFICIO DE UM propicia A VIDA PARA TODOS ?
  São momentos em que a ALIMENTAÇÃO deixa de ser um ato mecânico de satisfação de uma necessidade pessoal para se transformar em ATO DE FÉ , portanto ligado ao SAGRADO.
 Pense, referido ato não é diferente do de sentar-se à mesa em um restaurante e fazer o seu pedido, ou mesmo na sua casa, ou numa churrascaria para se alimentar ?
 Ao ir ao supermercado e comprar carne , frango, peixe... As pessoas questionam como aquele pedaço de baby beef chegou até ali? 
 Quantos se preocupam com as condições em que os animais e aves foram criados para dar lucro aos criadores, quantos questionam as formas com  que foram abatidos ?
 Comer , alimentar-se é, no dia a dia,  no máximo um ato social, uma forma de reunir-se para comemorar algo, sem preocupações.
 A própria ídeia de morte é ignorada e as pessoas procuram viver afastando-se da única verdade que conhecemos.
 A maneira como o alimento chega ao nosso prato, então!?  Parece meio mágica, tão longe está do dia a dia.    Basta ir ao supermercado e ter dinheiro para comprar que estaremos alimentados.
 Preparar a comida também está se tornando cada vez mais um ato automático, sem a consciência da importância do ato em si. 
 Ao preparar os alimentos,  podem-se acrescentar intenções de carinho, laços de afeto; as misturas podem e devem ser harmônicas para trazer saúde, e as preces e orações podem  fazer a diferença entre o valor simplesmente nutricional e o valor espiritual que o alimento servido terá para quem dele se alimentar.
 Nos terreiros de umbanda e roças de candomblé o alimento é sagrado e faz parte de rituais festivos. Durante os rituais, reconhece-se a LEI NATURAL DA VIDA, ou seja, o que acontece a todo momento na NATUREZA, na cadeia alimentar:  o sacrifício de um para que o outro tenha alimento.
 Apenas , como já disse antes,  por posturas religiosas, o candomblecista reconhece o sacrifício do animal que se tornará  alimento e vida para a comunidade, agradece por isso, louva o sacrifício, reza a carne , o que a torna consagrada para trazer saúde, força e equilibrio. Esse é o ritual praticado nas roças de candomblé e casas onde se seguem as tradições religiosas de origem africana.
 Nesses locais,  não apenas a carne é rezada e faz parte do ritual da VIDA;  as folhas, flores, frutos, cascas e raízes também o são, porque são reconhecidamente seres vivos,TÊM VIDA, TÊM AXÉ, e estão sendo sacrificados para trazer a harmonia e bem-estar físico e espiritual ao ser humano.
 A água também é objeto de rituais pois não há VIDA sem a água da chuva, dos rios, dos poços, dos açudes, do mar, sem o sereno, sem as nuvens . Ela deve ser coletada para os rituais de limpeza do corpo, da casa, dos objetos consagrados e,portanto, deve estar pura, limpa.
 Não existe ritual de candomblé e umbanda sem a manifestação de louvor e respeito à Natureza e aos seres viventes.
 Espero não ter me estendido demais. Estou grata pela oportunidade de compartilhar com vocês essa questão que tanto me mobiliza : o sagrado no profano.
 
Abraços renovados ,
 
Marili  Alexandre.

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