Postamos um texto de uma de nossas colaboradoras, Marili Alexandre, que dialoga com o momento pelo qual estamos passando, com relação a lei Nº 992 . Que a reflexão que ela propõe se torne uma reflexão de todos nós.
Estamos vivendo um momento muito especial em que se fala em ações positivas para o reconhecimento da importância das raízes africanas para a cultura brasileira e, concomitantemente, vemos tramitar, no Poder Legislativo, projetos de leis que cerceiam a liberdade dos rituais das religiões afrobrasileiras.
Forças opostas com interesses semelhantes se mobilizam , pois não há dúvida que o interesse em comum é o PODER , e que , a manipulação de preconceitos será sempre o caminho mais curto para a fragilização da força do concorrente ao voto, à cadeira, ao espaço público, à influência que se quer exercer.
Quando a questão é ritual então, nem se fale, pois entramos no território da FÉ .
Assim, para melhor esclarecer a questão dos rituais do candomblé e da umbanda , religiões fundamentadas em matriz africana, eu gostaria de levá-los a uma reflexão quanto aos rituais mais polêmicos, aqueles que são entendidos como "sacrifícios de animais".
Respirar, alimentar-se, hidratar-se são necessidades básicas para manutenção da vida.
Todos os seres vivos fazem isso todos os dias , senão estariam mortos.
A questão tão controversa de que estamos falando, não é a alimentação em si, mas a alimentação com consciência da VIDA E DA MORTE, e as respostas que cada um encontra na sua FÉ para enfrentar o MISTÉRIO , o PATHOS SOCIAL , ou seja : de onde eu vim?, por que estou vivo? para onde vou quando morrer? .
Em todas as religiões, os rituais se estabelecem para acalmar e dar conforto ao ser humano diante da experiência da dor e da consciência da morte.
Não raro, estes rituais estão ligados à ALIMENTAÇÃO, que sempre estará associada à experiência de conforto e sensação de prazer desde os primeiros instantes da vida de cada um.
Veja o ritual da missa da Igreja Católica Apostólica Romana . É um ritual ligado à alimentação do corpo e da alma.
Analisem : as pessoas se reunem à mesa da comunhão , é um banquete onde Cristo é o cordeiro que foi sacrificado para a Salvação de todos que seguirem seu caminho, é a representação ritual da última ceia de Jesus, onde ele dá seu corpo como pão e seu sangue como vinho para alimentar a FÉ e a confiança na vida eterna dos fiéis. Para todo cristão, nesse momento, Cristo sacrificado está presente como promessa da vida após a morte.
E quantos outros rituais levam os fiéis ao banquete, à festa em que o SACRIFICIO DE UM propicia A VIDA PARA TODOS ?
São momentos em que a ALIMENTAÇÃO deixa de ser um ato mecânico de satisfação de uma necessidade pessoal para se transformar em ATO DE FÉ , portanto ligado ao SAGRADO.
Pense, referido ato não é diferente do de sentar-se à mesa em um restaurante e fazer o seu pedido, ou mesmo na sua casa, ou numa churrascaria para se alimentar ?
Ao ir ao supermercado e comprar carne , frango, peixe... As pessoas questionam como aquele pedaço de baby beef chegou até ali?
Quantos se preocupam com as condições em que os animais e aves foram criados para dar lucro aos criadores, quantos questionam as formas com que foram abatidos ?
Comer , alimentar-se é, no dia a dia, no máximo um ato social, uma forma de reunir-se para comemorar algo, sem preocupações.
A própria ídeia de morte é ignorada e as pessoas procuram viver afastando-se da única verdade que conhecemos.
A maneira como o alimento chega ao nosso prato, então!? Parece meio mágica, tão longe está do dia a dia. Basta ir ao supermercado e ter dinheiro para comprar que estaremos alimentados.
Preparar a comida também está se tornando cada vez mais um ato automático, sem a consciência da importância do ato em si.
Ao preparar os alimentos, podem-se acrescentar intenções de carinho, laços de afeto; as misturas podem e devem ser harmônicas para trazer saúde, e as preces e orações podem fazer a diferença entre o valor simplesmente nutricional e o valor espiritual que o alimento servido terá para quem dele se alimentar.
Nos terreiros de umbanda e roças de candomblé o alimento é sagrado e faz parte de rituais festivos. Durante os rituais, reconhece-se a LEI NATURAL DA VIDA, ou seja, o que acontece a todo momento na NATUREZA, na cadeia alimentar: o sacrifício de um para que o outro tenha alimento.
Apenas , como já disse antes, por posturas religiosas, o candomblecista reconhece o sacrifício do animal que se tornará alimento e vida para a comunidade, agradece por isso, louva o sacrifício, reza a carne , o que a torna consagrada para trazer saúde, força e equilibrio. Esse é o ritual praticado nas roças de candomblé e casas onde se seguem as tradições religiosas de origem africana.
Nesses locais, não apenas a carne é rezada e faz parte do ritual da VIDA; as folhas, flores, frutos, cascas e raízes também o são, porque são reconhecidamente seres vivos,TÊM VIDA, TÊM AXÉ, e estão sendo sacrificados para trazer a harmonia e bem-estar físico e espiritual ao ser humano.
A água também é objeto de rituais pois não há VIDA sem a água da chuva, dos rios, dos poços, dos açudes, do mar, sem o sereno, sem as nuvens . Ela deve ser coletada para os rituais de limpeza do corpo, da casa, dos objetos consagrados e,portanto, deve estar pura, limpa.
Não existe ritual de candomblé e umbanda sem a manifestação de louvor e respeito à Natureza e aos seres viventes.
Espero não ter me estendido demais. Estou grata pela oportunidade de compartilhar com vocês essa questão que tanto me mobiliza : o sagrado no profano.
Abraços renovados ,
Marili Alexandre.